Eu, a Contaminação pelo Covid - 19 e o Pós- Parto:
O desafio do Isolamento
Social de uma Mulher Quilombola.
Por FRANCISCA MARLEIDE DO NASCIMENTO
Eu não nasci rodeada de livros, eu nasci rodeada de palavras.
No dia quinze de março de dois mil e vinte, surge o primeiro caso positivo de corona vírus no estado do Ceará, fui convocada pela prefeitura municipal de Horizonte a qual faço parte como coordenadora de um Centro de referência de assistência social, para uma reunião e começamos a pensar no que viria pela frente. No dia vinte e dois de março, suspendemos as atividades e informamos que iniciaria um isolamento social e mandamos pra casa todos que estariam nos grupos de risco, eu gestante de trinta e três semanas, estaria no grupo de risco, por vários motivos, um deles, o fato de minha terceira gestação já ser de risco, estava com diabetes gestacional e hipertensão, deveria me recolher em casa e esperar a tempestade passar.
Porém, minha casa é o meu quilombo, e não podia deixar de contribuir com os meus naquele momento desesperador. Decidi permanecer na linha de frente na organização e sistematização das medidas paliativas que a secretaria de assistência social tomaria naquele momento, os dias intensos e cansativos. Nós mulheres quilombolas sabemos que já nascemos com uma missão, a de jamais deixar nenhuma outra mulher para trás, e de cuidar uns dos outros, até quando nem querem ser cuidados!
Tiveram dias que eu pedia ao sagrado para que o meu filho ficasse um pouco mais na minha barriga, pois sabia que ali ele estava protegido, pedia para não me cansar tanto, pois precisava ter forças para ajudar no quilombo, as bordadeiras, as boleiras, as artesãs, o conjunto habitacional que tem muitas famílias em situação de extrema pobreza, minha cabeça tinha um turbilhão de pensamentos, dentre eles, os casos que começavam a surgir no município, mas principalmente a sobrevivência do meu povo, dos idosos, a vida do meu filho de onze anos que tem problemas respiratórios (Asma), o medo da contaminação do meu filho do meio de apenas um ano e oito meses e por fim minha gestação.
Os dias iam passando e todo dia agradecia por não ter nenhum sintoma pela comunidade e pelos de casa, e apesar de eu estar bem, com trinta e seis semanas Rhuan, meu filho mais novo, começou a dar sinais que queria vir antecipadamente, então meu medo aumentou, pois não poderia ter um parto normal, por ter uma cesárea recente, a menos de dois anos, a ansiedade tomou conta de mim, a angústia, o pavor, o receio de trazer uma vida tão frágil ao mundo em meio a esse momento o qual estamos vivendo.
Chorei, orei, rezei, fiz preces, pedi intercessão, falei com as rezadeiras, com as raizeiras da comunidade. Da umbandista recebi um levantar de mãos e proteção, e assim segui para a maternidade Eugenia Pinheiro no dia treze de abril de dois mil e vinte. Saudável e sem sintomas do Covid-19. Fiquei internada por dois dias, pois a diabetes estava descompensada, completei trinta e sete semanas no hospital, então os médicos resolveram interromper minha gestação e retirar meu filho, o parto foi feito juntamente com uma laqueadura no dia quinze de abril de dois mil e vinte, onde tudo ocorreu bem, e no dia seguinte me mandaram para casa. A esperança e o medo, na incerteza da dor!
Em casa, mimando o rebento começo a perceber os primeiro sintomas da contaminação, tentava sentir o cheiro do meu filho e não tinha êxito, a dor no corpo começou a me consumir, uma dor na barriga insuportável acarretada de diarreia. No início pensei que pudesse ser problemas normais do pós-cirúrgico, mas no quarto dia, a garganta começou a incomodar e mesmo sem tosse comecei a escarrar com raios de sangue, conversei com uma conhecida que é enfermeira e ela me disse pra ir a maternidade de imediato, pois poderia ser embolia pulmonar, assim fiz, e a essa altura um peito já doía muito, e o cansaço começava a chegar, foi então que pensei... é COVID, fui de um município ao outro com meu companheiro, chorando pensando que se fosse COVID, quem eu poderia ter contaminado.
Ao chegar à maternidade, já me atenderam como suspeita, e já me levaram para sala isolada, sem mais contato com meu companheiro, o médico me avaliou e passou uma série de exames, fiz Raios X, exame de Proteína C Reativa (PCR) e foi identificado uma lesão leve no pulmão, onde eles não sabiam ao certo se caracterizava COVID ou H1N1. Para aquele momento a única coisa que o médico me disse, foi: “Vá para casa, caso seus sintomas aumentem, você retorna, pois você está saturando bem e seu cansaço não está intenso”. Eu não me calei e disse: já que estão afirmando que estou com uma lesão pulmonar, vamos tratar para que não se agrave.
Como o plantão já havia trocado, pois passava das dezenove horas, no momento do retorno já era uma médica quem me atendera, que embora branca, ouviu meu apelo. Eu estava com apenas sete dias de parida, com um bebê em casa pra cuidar, um de um ano e sete meses e um garoto de onze anos asmático que não podia ter contato jamais com o vírus, e cheia de dores. Como uma criança quilombola é de responsabilidade de todo o quilombo, liguei pra meu irmão e já retirei meus filhos de casa e os deixei longe de mim. Retornei para casa e começou a saga pela procura de postos ou hospitais públicos que disponibilizassem o TAMIFLU, a medicação que me foi passada.
Passei quatro dias a procura e consegui através da Secretaria de saúde do município de Horizonte - CE, iniciei o tratamento e pensei, vou morrer! O estômago doía, o corpo, a alma e o coração! Fiquei no total dezessete dias usando de três a quatro máscaras para amamentar meu filho, sem poder olhar para ele, usando máscara para dormir e vendo meus outros filhos por vídeo chamada. Nos dias em que eu não estava bem eu não ligava, para que ninguém soubesse que naquele dia eu podia não sobreviver!
Foram dez dias muito ruins, onde o que me fez suportar foram às vozes externas dos vizinhos nos quintais, as mensagens dos amigos nas redes sociais, o cheiro do meu filhinho que voltei a sentir, foi a parceria do meu companheiro que não desistiu de cuidar de tudo sozinho e me lembrar de todos os dias que temos agora três filhos pra criar e que eu precisava confeccionar as máscaras do povo da comunidade, foram os amigos da luta diária.
No décimo dia, o exame chegou e confirmou, que era COVID, então fiz um vídeo alertando dos sintomas e fiz circular nas redes e pelo quilombo, comecei a pensar estratégias de enfrentamento, para que a comunidade tomasse consciência de que esse vírus além de ser letal, está bem perto de nós. E que eu fui sim, privilegiada, por ter um plano de saúde que contribuiu para que eu fosse atendida rápido, eu tive um transporte para me conduzir prontamente todas as vezes que precisei, eu tenho um trabalho formal, me permitindo ficar em casa, e sobre tudo ou apesar de tudo, eu tenho instrução que me auxiliou a discernir e a compreender a necessidade de procurar atendimento.
E quem não tem? E quem está nos quilombos mais distantes? E os que não tem condição de ficar em casa e precisam ir trabalhar? E os que não tem instrução e desconhecem o risco real do vírus? É por essas pessoas que precisamos pensar! Sair das plataformas digitais e voltar para a humana.
Depois dos dezessete dias procurei a unidade básica de saúde, para saber o que fazer, se estava curada, como proceder! Se podia já levar meus filhos para casa... Pois, afinal eu não tive nenhum acompanhamento, embora eu tivesse notificado meu caso ao estado e ao município, fui o primeiro caso confirmado nos quilombos do Ceará.
E aquela situação me fez pensar novamente nos meus! Que possivelmente até tenham já tido casos nos quilombos, mas por falta de acompanhamento e de exames, não foram diagnosticados.
Então o que penso é que deveríamos ter acompanhamento específico da saúde em nossas comunidades, pois, nossos territórios são insalubres, sem saneamento, escasso de água e com muitas outras vulnerabilidades.